Pensar não é um ato definitivo em si, mas uma cadeia de palavras, enunciados e definições construídas e emitidas em meio a um contexto que revela percepções, como diria Maurice Merleau-Ponty, e desenha o mundo de quem pensa. Mas, pergunto, esse mundo seria um mundo subjetivo, onde cada palavra emitida sobre ele seria uma mera interpretação? Esse mundo, segundo a leitura de Edgar Morin, é uma “costura”, um intrincado de linhas cruzadas, paralelas, diagonais, triangulares, multicor e multiforme. Portanto, mesmo o pensar de um é um pensar o mundo no mundo, porque este sujeito está diretamente implicado neste último e porque compõe e se constitui da e na trama cósmica. O homem é mundo e o é como chair1 (carne, segundo Merleau-Ponty2). Não existe um contorno que delimite o espaço de um único pensar, mas múltiplos contornos, desconhecidos e incertos a priori.
Como bem recorda Morin, enquanto progredia, a modernidade conheceu uma diferenciação funcional (Beck, 1986; Laeyendecker, 1990; Magatti, 2009) entre os diversos subsistemas construídos até então, como a economia, a política e a religião. Cada subsistema evoluía por si mesmo e cada vez mais tendia3 a enxergar o mundo com o próprio paradigma. Verifica-se um crescente processo de especialização de e em cada função social (subsistemas), que trouxe efeitos em vários âmbitos sociais, como o que assistimos na evolução da industrialização e na divisão do trabalho. Uma racionalidade funcional (ou racionalidade tecnoburocrática, em Morin) ganhou força e incrementou a técnica, fortaleceu a ciência e fez com que cada subsistema se desenvolvesse numa perspectiva unidimensional. Com isso, assistimos à fragmentação do mundo e (por que não?) do sujeito4. Como diz Morin: “a inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva, reducionista, destrói a complexidade do mundo, em fragmentos distintos, fraciona os problemas, separa o que está unido, unidimensionaliza o multidimensional” (2003, p. 71). A conseqüência disso é uma inteligência cega, incapaz de enxergar a degradação que produz, mas orgulhosamente convencida do que faz.
Não obstante tal racionalidade, o mundo pensa e revisitando os percursos desse pensar, chegamos a uma das maiores descobertas do século XX: a incerteza. A lógica nos mostrou que não existe uma única forma de organizar ou de sistematizar o mundo e ainda, como destaca Morin, “revelou as incertezas na indução, as idedutibilidades na dedução, e os limites no princípio do terceiro incluso” (ibid., p. 71). A ciência discutiu as várias formas de construção científica cogitando desde a indução à dedução, passando pelo racionalismo lógico e o racionalismo crítico, e muito se frisou que tais métodos di per sé não respondem à complexidade do saber humano. Em meio a isso, vemos o lento surgimento de um pensamento que dê conta dessa complexidade. Vemos ainda a lenta e necessária aproximação dos subsistemas para a composição da complexa teia social, por exemplo, assistimos hoje a discussão que implica cada vez mais um subsistema com outro, como ocorre no vivo debate entre economia, política e ecologia, bem como um encontro sempre mais fecundo e aberto entre as ciências e as demais formas de saber. Não se trata de fusões de saberes, mas de um trans que nos permite enxergar para além de um único subsistema, isto é, de considerá-los juntos. São sistemas que se retroalimentam e se reconhecem uns nos outros sem necessariamente se desfazer.
Procurando elucidar e caracterizar o que chama de complexidade, Morin destaca sete princípios que nos ajudam a entender como reunir as forças que a humanidade criou não obstante o desafio da incerteza. São princípios-chave para compreender essa lenta e profunda revolução que a sociedade está vivendo. Assim temos: (1) “o princípio sistêmico, ou organizacional”, onde o todo é mais do que a soma das partes e onde se reconhece que é impossível conhecer partes o ou o todo se não se conhece um ou outro; (2) o “princípio “hologramático”, que responde ao paradoxo do princípio anterior afirmando que “o próprio todo está nas partes”; (3) o “princípio do ciclo retroativo”, que garante a autonomia do sistema na medida em que se considera que o que é gerado por este produz retroações sobre o próprio sistema, envolvendo-o por completo. Esse princípio, segundo Morin (citando Wiener), “rompe com o princípio da causalidade linear”; (4) o “princípio do ciclo recorrente” destaca a auto-organização de um sistema, que não somente gera como, a partir de seus peculiares elementos, é auto-gerado e se mantém; (5) o “princípio de auto-ecoorganização”, a partir do qual se destaca o ciclo constante de morte e vida para a conservação dos seres humanos e da sociedade; (6) o “princípio dialógico”, através do qual evidentes antagonismos como o de morte e vida se mostram indissociavelmente ligados; e, por fim, (7) o “princípio da reintrodução do conhecido em todo o conhecimento”, no qual o autor destaca a necessidade de se encontrar soluções com tudo o que o conhecimento foi capaz de produzir, reconhecendo limites e encontrando meios de compatibilização entre tais conhecimentos.

Com isso, podemos continuar a pensar, mas de modo complexo. Pensar em modo complexo requer, porém, uma mudança e uma maturação do paradigma que nos move para não cairmos novamente nos riscos da fragmentação. Exige, portanto, um alargamento de horizontes e uma abertura ao que o mundo, em seus múltiplos contextos, nos faz perceber. Mais que isso, uma abertura a experimentar o mundo, sentindo-o de modo intenso, pensando-o/vivendo-o ou vivendo-o/pensando-o. Ouso dizer que o pensar complexamente é um pensar sempre novo, a partir do qual podemos afirmar que mesmo a repetição é uma ilusão, pois se renova na medida em que supostamente se repete. E ainda ouso repetir a afirmação de Morin na qual destaca que “o pensamento complexo não é o contrário do pensamento simplificador, ele o integra” (ibid., p. 75), ou seja, pensar o simples não nega o complexo e vice-versa. Com o pensamento complexo, posso, portanto, pensar seja na certeza que na incerteza, no in/de-dutível e no complexo, sem me reduzir a uma única instância do saber.
Referências bibliográficas:
BECK U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Suhrkamp, Frankfurt/Main 1986. [Italiano], La società del rischio. Verso una seconda modernità, Carocci, Roma 2007.
CHAUÍ, M. Merleau-Ponty: a obra fecunda, In: http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=EF641083-3D32-4F8C-9C5D30564DAAF6B4&nwsCode=94DC1935-FEEE-42BB-A74F-EBCB0FD15DED. Acesso em: 20/11/2009.
FERREIRA, A. L. L. A psicologia como saber mestiço: o cruzamento múltiplo entre práticas sociais e conceitos científicos. Histórias, Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 227-238, abr.-jun. 2006.
LAEYENDECKER (Leo), Spiritualiteit en moderne cultuur, in J. BEUMER (ed.), Als de hemel de aarde raakt, Kok, Kampen,179 p., cit. pp.9-24, 1990.
MAGATTI M., Libertà immaginaria. Le illusioni del capitalismo technonihilista, Feltrinelli, Milano 2009.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2000.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.
MORIN, E. A necessidade do pensamento complexo. In: MENDES, Candido (org.). Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. p. 69-77.
Notas:
1 O conceito de carne, elaborado na fase mais madura do filósofo francês, foi deixado em aberto devido à sua morte precoce, mas revela um homem-mundo onde vivência e contexto se co(n)-fundem. Compartilho a reflexão de Marilena Chauí sobre o conceito: “Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne” (CHAUÍ, M. Merleau-Ponty: a obra fecunda, In: Revista Cult, n. 123).
2 Recomendo a leitura do texto “A dúvida de Cézanne” e do livro inacabado “O Visível e o Invisível”, de Maurice Merleau-Ponty (2000).
3 Escrevo no tempo passado, mas ainda hoje vemos resquícios dessa diferenciação funcional.
4 A história e a epistemologia da psicologia são testemunhas da criação de diversos modos de subjetivação que a modernidade criou e que não pára de criar em um constante processo de hibridização (FERREIRA, A. A. L., 2006).
0 manifestações:
Postar um comentário