Textos e reflexões de Rodrigo Meireles

29.9.10

Das certezas às incertezas, do in/de-dedutível ao complexo

Pensar não é um ato definitivo em si, mas uma cadeia de palavras, enunciados e definições construídas e emitidas em meio a um contexto que revela percepções, como diria Maurice Merleau-Ponty, e desenha o mundo de quem pensa. Mas, pergunto, esse mundo seria um mundo subjetivo, onde cada palavra emitida sobre ele seria uma mera interpretação? Esse mundo, segundo a leitura de Edgar Morin, é uma “costura”, um intrincado de linhas cruzadas, paralelas, diagonais, triangulares, multicor e multiforme. Portanto, mesmo o pensar de um é um pensar o mundo no mundo, porque este sujeito está diretamente implicado neste último e porque compõe e se constitui da e na trama cósmica. O homem é mundo e o é como chair1 (carne, segundo Merleau-Ponty2). Não existe um contorno que delimite o espaço de um único pensar, mas múltiplos contornos, desconhecidos e incertos a priori.


Como bem recorda Morin, enquanto progredia, a modernidade conheceu uma diferenciação funcional (Beck, 1986; Laeyendecker, 1990; Magatti, 2009) entre os diversos subsistemas construídos até então, como a economia, a política e a religião. Cada subsistema evoluía por si mesmo e cada vez mais tendia3 a enxergar o mundo com o próprio paradigma. Verifica-se um crescente processo de especialização de e em cada função social (subsistemas), que trouxe efeitos em vários âmbitos sociais, como o que assistimos na evolução da industrialização e na divisão do trabalho. Uma racionalidade funcional (ou racionalidade tecnoburocrática, em Morin) ganhou força e incrementou a técnica, fortaleceu a ciência e fez com que cada subsistema se desenvolvesse numa perspectiva unidimensional. Com isso, assistimos à fragmentação do mundo e (por que não?) do sujeito4. Como diz Morin: “a inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva, reducionista, destrói a complexidade do mundo, em fragmentos distintos, fraciona os problemas, separa o que está unido, unidimensionaliza o multidimensional” (2003, p. 71). A conseqüência disso é uma inteligência cega, incapaz de enxergar a degradação que produz, mas orgulhosamente convencida do que faz.


Não obstante tal racionalidade, o mundo pensa e revisitando os percursos desse pensar, chegamos a uma das maiores descobertas do século XX: a incerteza. A lógica nos mostrou que não existe uma única forma de organizar ou de sistematizar o mundo e ainda, como destaca Morin, “revelou as incertezas na indução, as idedutibilidades na dedução, e os limites no princípio do terceiro incluso” (ibid., p. 71). A ciência discutiu as várias formas de construção científica cogitando desde a indução à dedução, passando pelo racionalismo lógico e o racionalismo crítico, e muito se frisou que tais métodos di per sé não respondem à complexidade do saber humano. Em meio a isso, vemos o lento surgimento de um pensamento que dê conta dessa complexidade. Vemos ainda a lenta e necessária aproximação dos subsistemas para a composição da complexa teia social, por exemplo, assistimos hoje a discussão que implica cada vez mais um subsistema com outro, como ocorre no vivo debate entre economia, política e ecologia, bem como um encontro sempre mais fecundo e aberto entre as ciências e as demais formas de saber. Não se trata de fusões de saberes, mas de um trans que nos permite enxergar para além de um único subsistema, isto é, de considerá-los juntos. São sistemas que se retroalimentam e se reconhecem uns nos outros sem necessariamente se desfazer.


Procurando elucidar e caracterizar o que chama de complexidade, Morin destaca sete princípios que nos ajudam a entender como reunir as forças que a humanidade criou não obstante o desafio da incerteza. São princípios-chave para compreender essa lenta e profunda revolução que a sociedade está vivendo. Assim temos: (1) “o princípio sistêmico, ou organizacional”, onde o todo é mais do que a soma das partes e onde se reconhece que é impossível conhecer partes o ou o todo se não se conhece um ou outro; (2) oprincípio “hologramático, que responde ao paradoxo do princípio anterior afirmando que “o próprio todo está nas partes”; (3) o princípio do ciclo retroativo, que garante a autonomia do sistema na medida em que se considera que o que é gerado por este produz retroações sobre o próprio sistema, envolvendo-o por completo. Esse princípio, segundo Morin (citando Wiener), “rompe com o princípio da causalidade linear”; (4) o “princípio do ciclo recorrente destaca a auto-organização de um sistema, que não somente gera como, a partir de seus peculiares elementos, é auto-gerado e se mantém; (5) o “princípio de auto-ecoorganização, a partir do qual se destaca o ciclo constante de morte e vida para a conservação dos seres humanos e da sociedade; (6) o “princípio dialógico, através do qual evidentes antagonismos como o de morte e vida se mostram indissociavelmente ligados; e, por fim, (7) o “princípio da reintrodução do conhecido em todo o conhecimento, no qual o autor destaca a necessidade de se encontrar soluções com tudo o que o conhecimento foi capaz de produzir, reconhecendo limites e encontrando meios de compatibilização entre tais conhecimentos.


Tais princípios não foram dados de um momento a outro, mas atravessaram uma maturação sempre maior e mostram evidências significativas em vários episódios e campos, como já destaquei anteriormente. Indo mais além, Morin frisa que esses princípios não nasceram de uma mera conclusão moderna, mas são frutos da própria história, uma vez que se encontram em vários enunciados da filosofia, da ciência e de diversas tradições, mesmo em tradições milenares como a chinesa. Essa história nos conduz a uma revolução ainda em curso, inacabada, “que introduz a organização nas ciências da terra e a ciência ecológica” (ibid., p. 77). Trata-se da revolução sistêmica, que foi e é um processo contínuo.


Com isso, podemos continuar a pensar, mas de modo complexo. Pensar em modo complexo requer, porém, uma mudança e uma maturação do paradigma que nos move para não cairmos novamente nos riscos da fragmentação. Exige, portanto, um alargamento de horizontes e uma abertura ao que o mundo, em seus múltiplos contextos, nos faz perceber. Mais que isso, uma abertura a experimentar o mundo, sentindo-o de modo intenso, pensando-o/vivendo-o ou vivendo-o/pensando-o. Ouso dizer que o pensar complexamente é um pensar sempre novo, a partir do qual podemos afirmar que mesmo a repetição é uma ilusão, pois se renova na medida em que supostamente se repete. E ainda ouso repetir a afirmação de Morin na qual destaca que “o pensamento complexo não é o contrário do pensamento simplificador, ele o integra” (ibid., p. 75), ou seja, pensar o simples não nega o complexo e vice-versa. Com o pensamento complexo, posso, portanto, pensar seja na certeza que na incerteza, no in/de-dutível e no complexo, sem me reduzir a uma única instância do saber.



Referências bibliográficas:

BECK U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Suhrkamp, Frankfurt/Main 1986. [Italiano], La società del rischio. Verso una seconda modernità, Carocci, Roma 2007.


FERREIRA, A. L. L. A psicologia como saber mestiço: o cruzamento múltiplo entre práticas sociais e conceitos científicos. Histórias, Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 227-238, abr.-jun. 2006.

LAEYENDECKER (Leo), Spiritualiteit en moderne cultuur, in J. BEUMER (ed.), Als de hemel de aarde raakt, Kok, Kampen,179 p., cit. pp.9-24, 1990.

MAGATTI M., Libertà immaginaria. Le illusioni del capitalismo technonihilista, Feltrinelli, Milano 2009.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2000.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.

MORIN, E. A necessidade do pensamento complexo. In: MENDES, Candido (org.). Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. p. 69-77.



Notas:

1 O conceito de carne, elaborado na fase mais madura do filósofo francês, foi deixado em aberto devido à sua morte precoce, mas revela um homem-mundo onde vivência e contexto se co(n)-fundem. Compartilho a reflexão de Marilena Chauí sobre o conceito: “Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne” (CHAUÍ, M. Merleau-Ponty: a obra fecunda, In: Revista Cult, n. 123).

2 Recomendo a leitura do texto “A dúvida de Cézanne” e do livro inacabado “O Visível e o Invisível”, de Maurice Merleau-Ponty (2000).

3 Escrevo no tempo passado, mas ainda hoje vemos resquícios dessa diferenciação funcional.

4 A história e a epistemologia da psicologia são testemunhas da criação de diversos modos de subjetivação que a modernidade criou e que não pára de criar em um constante processo de hibridização (FERREIRA, A. A. L., 2006).


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